Archive for setembro 2011
"A asfixia das rendas"
O núcleo profundo da crise situa-se na distinção entre dois conceitos básicos: produção e renda. Portugal era um país de produção e tem-se vindo a transformar num país de rendas.
Embora elementares, é bom precisar as noções. Produção constitui, evidentemente, um conceito central da economia, o uso de recursos para satisfazer necessidades humanas. Originalmente relacionado com a obtenção de bens físicos, cultivando a terra ou operando manufacturas, a complexa sociedade actual acrescentou-lhe o vasto elenco dos serviços, dos transportes ao turismo, arte, finança, comércio, divertimento, etc. Em todos os casos está em causa fazer algo, ter utilidade, criar valor.
A renda, em contraste, é o ganho de quem nada gera, um pagamento sem contrapartida válida. Originalmente designava as receitas dos proprietários absentistas, pagando a vida ociosa com o produto dos rendeiros. Hoje, embora "renda económica pura" mantenha definição científica rigorosa, o preço de um recurso de oferta inelástica, a expressão rent-seeking, traduzida por "captura de rendas", aplica-se a múltiplas situações de ganho sem produção.
Durante séculos os portugueses sabiam não existir outra forma honesta de ganhar a vida senão trabalhar e produzir. Nos anos recentes, passado o medo da Europa, a tradicional capacidade lusitana para identificar e aproveitar ganhos incorporou uma vastíssima panóplia de novos métodos legítimos e aceitáveis de lucrar sem produzir. Existem mesmo profissões especializadas em fazer funcionar esses mecanismos. Há até quem se farte de trabalhar para as conseguir. Na indústria das rendas existem trabalhadores, empresas, contratos, negociação, esforço. A única coisa que falta é produção, utilidade, valor.
Algumas são fáceis de identificar. A multidão de subsídios, apoios, benefícios, promoções, excepções e deduções são formas evidentes de rendas, com justificação mais ou menos clara, elaborada ou aceitável. Misturada anda a corrupção, sempre denunciada, facilmente oculta, nunca admitida. Também a indignação pelas portagens advém de, sendo um imposto, elas manterem a ligação a uma forma clássica de renda, quando bandidos medievais ocupavam uma ponte ou estrada obrigando os passantes a pagamento.
O pior está nas múltiplas rendas mascaradas. A sofisticada sociedade actual facilita o disfarce da extorsão atrás da produção. Uma obra pública ou serviço inútil, desnecessário, sumptuário ou só mais caro que o benefício, tem sempre por trás a construtora ou fornecedora capturando uma renda enquanto mantém a imagem empresarial de produtividade. Outra forma descarada de extracção de renda está no proteccionismo dos sectores, das telecomunicações aos bancos, passando por hospitais, escolas, empresas públicas, municipais, beneficiadas, escritórios de advogados, etc. Mantendo a parafernália legal de negociações e contratos, sacrifica-se o interesse público em rendas injustificadas. Todo o preço acima do valor justo, por imposição legal ou monopolista, deve ser considerado uma renda. O excesso de regulamentação e fiscalização é o caso mais subtil. Tomando uma finalidade meritória, da defesa do consumidor à protecção ao ambiente, o exagero de exigências alimenta um exército de técnicos, inspectores, especialistas, revisores, sugando empresas produtivas.
Esta é a origem da crise, com inúmeros esforços desviados de actividades produtivas para a captura de rendas. Não admira a queda do investimento, estagnação da produção, endividamento externo, surto do desemprego.
A tarefa mais urgente e decisiva está no combate aos mecanismos de renda. Mais importante do que descer a despesa pública, é eliminar esses processos que desperdiçam recursos valiosos e asfixiam a economia. Mas uma mudança desta dimensão não se consegue apenas com políticas e decretos. Só se liberta a sociedade desta praga com um repúdio generalizado da comunidade por esses sistemas de extorsão instalada. Os quais, em muitos casos, ainda têm o desplante de se queixarem nos jornais da perda das rendas.
João César das Neves in DN online
Eutanásia: Matar a compaixão ou matar com compaixão?
Anteontem, em conversa ao almoço, conversava sobre a perda do sentido ético e moral da sociedade em que vivemos e o caminho tenebroso que se avizinha no dia de amanhã. Então, punha-se uma questão interessante e, ao mesmo tempo, preocupante: será que as pessoas sabem realmente o que é a eutanásia e tomarem uma posição consciente perante ela? Provavelmente, e atirando um número ao calhas, cerca de 70% da população não sabe distinguir os vários tipos de eutanásia nem pesar devidamente os prós e contras desta prática. E quando vier um referendo? A maior parte das pessoas aprova esta prática, porque é opinião geral criticar ver uma pessoa a sofrer no hospital. Será que tudo se resume a isto? E é graças ao consequente liberalismo político e pluralismo a que somos impostos que as pessoas dispersam e perdem os valores morais realmente essenciais. Basicamente, a maior parte das pessoas não sabe o que quer e vai com a moda. E a moda agora é "Eutanásia, sim".
A expressão "morrer com dignidade" transformou-se num slogan confuso. Por um lado, é proclamado por pessoas favoráveis ao desligamento de máquinas que mantêm o doente vivo. Por outro lado, é defendido por aqueles que, contra a transformação da pessoa humana num mero objecto, colocam-se contra o prolongamento abusivo da vida humana através de tratamentos extraordinários sem efeito.
Que postura é moralmente correcta?
Ser doente não é sinónimo de ser sucata. Os hospitais têm sido convertidos em autênticas oficinas de reparações: ou se consertam os pequenos defeitos ou o destino é a sucata. Quem assim o ordenou foi a nova aristocracia do bem-estar e do controlo demográfico. A medicina tornou-se, numa palavra, um instrumento da engenharia social. Os médicos têm de compreender que o seu primeiro dever ético - o respeito pela vida - se concretiza, em primeiro lugar, no respeito pela vida debilitada. O respeito pela vida está ligado, de forma indissolúvel, à aceitação da sua vulnerabilidade, à fragilidade do homem e à inevitabilidade da sua morte.
Legalmente, partindo do princípio que vivemos num Estado de Direito, temos o pressuposto da protecção da vida dos seus cidadãos. Também sabemos, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que todas as pessoas têm o direito à vida, a cuidados de saúde e a segurança em caso de doença. Só por este prisma, desde logo percebemos que há um grande conflito ético em permitir a prática da eutanásia para "aliviar o sofrimento de uma pessoa". Tendo em conta o juramento de Hipócrates, os médicos deveriam considerar a vida algo sagrado e, consequentemente, a eutanásia considerar-se-ia homicídio. Cabe assim ao médico, cumprindo o juramento de Hipócrates, assistir o paciente, fornecendo-lhe todo e qualquer meio necessário à sua subsistência.
A eutanásia pode parecer um acto de liberdade mas, ao fim e ao cabo, trata-se da supressão da própria liberdade. Torna-se evidente a desumanização e anti-socialização pela eutanásia, porque ataca o próprio fundamento da comunidade que é a vida dos seus membros.
A atitude moralmente correcta será, portanto, uma postura defensora da ortotanásia, ou seja, o uso de cuidados paliativos como instrumentos de preservação da dignidade humana nos momentos finais da vida.
Nunca é lícito matar o outro, ainda que ele o quisesse e mesmo que ele o pedisse. Nem é lícito sequer quando o doente já não está em condições de sobreviver.
O vínculo do casamento
«Quando Deus criou o nosso primeiro pai e o pôs no Paraíso terreal, conta a Sagrada Escritura que sepultou Adão num profundo sono e que, entrementes que dormia, lhe arrancou uma costela do lado esquerdo, da qual formou nossa mãe Eva. Assim que despertou e deu com os olhos nela, disse: - Esta é a carne da minha carne, e o osso dos meus ossos. E Deus acudiu a ditar-lhe a lei: - Por esta o homem deixará o pai e a mãe e serão dois numa só carne. Então foi instituído o divino sacramento do matrimónio com tais vínculos que só a morte pode desatá-los. Tanta força e virtude possui este milagroso sacramento que faz com que duas pessoas diferentes sejam uma mesma carne. Vai mais longe: nos bem-casados, são uma vontade em duas almas.»
in D. Quixote de la Mancha