Posted by : Nuno T. Menezes Gonçalves 06 agosto 2011

JOHN RAWLS: o primado da justiça numa sociedade pluralista

     Os eixos fundamentais do pensamento de Rawls são, por um lado, a prevalência dada ao que chama "a primeira virtude da sociedade" e, por outro, a necessidade teórica e prática de pensar a virtude social da justiça no quadro pluralista que marca as democracias constitucionais, ou Estados de direito.
     Uma sociedade justa de cidadãos livres e iguais, mas divididos nas suas doutrinas abrangentes, é possível na medida em que uma concepção pública de justiça restrita ao domínio político possa ser o foco de um consenso de sobreposição entre doutrinas abrangentes  razoáveis que fundamente os aspectos essenciais da constituição e os principais arranjos económicos e sociais. O bem do sistema de cooperação é simultaneamente o bem dos seus membros. Contudo, esta visão substantiva é, em parte, uma realidade e, também em parte, uma utopia.
     Partindo da ideia de sociedade como um sistema de cooperação, mas também conflito, entre indivíduos livres e iguais, quais são os princípios da justiça que podem estabelecer um adequado equilíbrio quanto às reivindicações respeitantes às vantagens e encargos dessa cooperação, quer em termos de direito e liberdades básicas, quer em matéria económica e social? O que é uma sociedade justa de pessoas livres e iguais? Como é possível a existência de uma sociedade justa e estável de cidadãos livres e iguais divididos nas suas doutrinas religiosas, morais e filosóficas?
     Segundo Rawls, à filosofia política podem-se atribuir quatro papéis fundamentais. Em primeiro lugar, tem uma função prática, surgindo quando existem importantes divisões na sociedade, por exemplo quando não se encontra consenso sobre o modo correcto de entender a liberdade. Em segundo lugar, a filosofia política tem uma função de orientação, permitindo conceber os fins e propósitos da sociedade no seu conjunto e o papel das pessoas como cidadãos dessa sociedade. Em terceiro lugar, tem um papel de reconciliação, permitindo compreender a racionalidade das instituições sociais formadas ao longo do tempo. Por fim, tem a função de formular uma "utopia realista" que conjugue uma visão ideal da sociedade justa com a exequibilidade social, tendo em atenção a realidade histórica. Em suma, a filosofia política parte dos desacordos existentes na sociedade e permite uma orientação e uma reconciliação de cada um com a sociedade em que se insere, mas também permite a articulação entre o real e o ideal.
     A liberdade e igualdade fundam-se em dois poderes morais: a capacidade para formular e perseguir uma concepção determinada do bem e a capacidade para um sentido de justiça. O primeiro é uma consequência da racionalidade, enquanto que o segundo advém da razoabilidade. São estes poderes morais, assim como as qualidades usuais do entendimento, que permitem a cada um ser um membro igual do sistema de cooperação social e desenvolver em liberdade a sua concepção do bem.
     A cooperação entre indivíduos iguais e livres requer a distribuição equitativa dos inevitáveis benefícios e encargos resultantes da vida em sociedade. Quando há cooperação existe também conflito em relação à partilha de vantagens e obrigações. É importante notar que, em qualquer sociedade, já existe uma estrutura básica da qual depende a distribuição dos bens sociais primários - liberdades, oportunidades de acesso a poderes e funções, riqueza e rendimentos - que é composta pelo conjunto das principais instituições - constituição, tribunais, estatuto económico, sistema educativo - e pelo modo como elas funcionam em conjunto para determinar na prática os direitos e deveres dos cidadãos. Cada um nasce já num enquadramento regulado por uma estrutura básica da qual depende em boa parte o ponto de partida de cada indivíduo.
     Segundo Rawls, a distribuição dos bens sociais primários segue dois princípios de justiça: o princípio da igualdade em sentido liberal e o princípio da diferença. O primeiro diz que cada pessoa deve ter um direito igual a um esquema inteiramente adequado de direitos e liberdades básicas, compatível com o mesmo esquema para todos, e que deve ser garantido o justo valor às liberdades políticas. O segundo princípio diz que as desigualdades económicas e sociais devem satisfazer duas condições: ser a consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade equitativa de oportunidades; ser para o maior benefício dos membros menos favorecidos da sociedade.
     Os princípios da justiça são reforçados através do argumento da "posição original". Funciona como um dispositivo de representação para os cidadãos de uma democracia. Na posição original, as partes que nos representam devem escolher a melhor concepção a partir de uma lista prévia fornecida pela história do pensamento político, lista esta que a qualquer momento pode ser alterada, e visa garantir a equidade da escolha e afastar a parcialidade que sói marcar as nossas opções em situação factual. Os princípios da justiça garantem a possibilidade da livre prossecução de qualquer concepção do bem compatível com a justiça e permitem uma clara ordenação das reivindicações quanto à distribuição dos bens sociais primários.
     Um socialismo de Estado não configura uma sociedade justa, conduz a um regime de partido único que controla a economia e pouco utiliza os mecanismos do mercado ou os procedimentos democráticos, violando flagrantemente o primeiro princípio da justiça. Para Rawls, os tipos de estrutura básica mais adequados são o socialismo liberal ou a democracia de proprietários: ambos são favoráveis à existência de um mercado livre e asseguram o direito de propriedade pessoal.
     Se uma sociedade com instituições justas implica uma democracia constitucional e, assim, a protecção das liberdades dos cidadãos, daí resulta um pluralismo de doutrinas abrangentes razoáveis, compatíveis com a justiça, de carácter moral, religioso ou filosófico. Uma doutrina abrangente é uma mundividência que articula valores e virtudes num sistema, muitas vezes apoiada numa visão religiosa ou filosófica. O pluralismo não tem um carácter provisório ou acessório numa sociedade democrática, é uma das suas características naturais e permanentes.

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